terça-feira, 27 de março de 2012

Técnica: A melodia poética

A poesia tem uma dimensão melódica que a aproxima da fala humana. Não da fala solta e desatenta dos instantes banais, mas de uma fala transfigurada. Uma fala que nasce também dos ritmos de nossa voz, mas da voz que usamos nos momentos mais carregados de urgência, de emotividade, de concentração. Comentando a amizade literária entre o poeta norte-americano Robert Frost e o crítico britânico Edward Thomas, Matthew Hollis observou:

"Para esses dois homens [Frost e Thomas], a máquina que move a poesia não é a rima nem sequer a forma, mas o ritmo, e o órgão pelo qual ela se comunica é o ouvido que escuta, mais do que o olho que lê. Para Thomas e Frost isso acarretava uma fidelidade mais à frase do que à contagem métrica, aos ritmos da fala mais do que às convenções poéticas; uma fidelidade àquilo que Frost chamava de 'cadência'. Se você já ouviu pessoas conversando por trás de portas fechadas, raciocinava Frost, você já deve ter reparado que é possível entender o sentido geral de uma conversação mesmo quando as palavras propriamente ditas são indistintas. Isto é porque as entonações e as sentenças com que falamos estão carregadas de sentido, formando um 'significado sonoro'. É sobre esse significado, desencadeado pelo ritmo da voz que fala, que a poesia se comunica de maneira mais profunda. Thomas escreveu certa vez: 'Um homem não pode escrever melhor do que ele fala quando alguma coisa o emocionou profundamente'".
Urgência melódica
Acho que tudo isso deve ser considerado a sério quando falamos que a poesia tem influência oral, da fala, etc. Muita gente pensa que isso indica apenas que a poesia deve ser sempre coloquial, informal, descontraída, parecida com o modo desconexo e descuidado como falamos. Não é bem isso. A poesia deve se aproximar da fala em todos os registros da fala , em todas as maneiras com que somos capazes de imprimir à fala (entre outras coisas) gravidade, tensão, emotividade, arrebatamento. Como se tivéssemos um telefonema de quinze segundos para comunicar algo muito importante a alguém, mas em compensação pudéssemos preparar o que dizer nesses 15 segundos durante o tempo que fosse necessário.
A fala tem seu encantamento próprio; a mera vibração da fala humana é carregada de sentido, e nos permite entender o que é dito mesmo quando, por trás de portas fechadas, não percebemos as palavras, mas entendemos a urgência indicada por aquela tensão. Assim como num país estrangeiro somos muitas vezes capazes de entender situações em que pessoas estranhas se exprimem num idioma que desconhecemos. Não é o sentido dicionarizado de suas palavras que percebemos, é a urgência melódica e rítmica da voz, sua ênfase, a emoção melódica com que a voz humana nunca deixa de nos atingir.
Poesia discursiva
T. S. Eliot dizia: "A poesia não deve derivar para muito longe da nossa linguagem ordinária, cotidiana, a que usamos e que ouvimos. Que seja ela acentual ou silábica, rimada ou sem rimas, formal ou livre, ela não pode se dar o luxo de perder o contato com as formas mutáveis do discurso coloquial. (...) Cada revolução na poesia acaba resultando, e muitas vezes assim se proclama, num retorno à fala comum."

Existe uma espécie de cordão umbilical ligando a poesia discursiva à fala, e isto talvez explique a tensão em duas fronteiras conflagradas que a poesia mantém com outras formas de expressão.

A primeira é a fronteira entre a poesia discursiva e a poesia visual, todos aqueles movimentos que procuram explorar o lado gráfico da poesia, muitas vezes em detrimento de seu lado discursivo. Os caligramas, os poemas concretos, o poema processo, todas as experiências em que a forma visível das palavras ou das frases se sobrepõe a sua carga original de significado. Quando isto acontece, o leitor de poesia formado pela poesia discursiva sente-se pouco à vontade, porque enxerga naquilo uma perda da melodia poética, um afastamento da voz e do ouvido. Quando a poesia começa a ser feita para a página e para o olho, afasta-se desse murmúrio de vozes humanas que lhe deu origem.
Letra de música
A outra fronteira belicosa é a que a poesia mantém com a canção, com a letra de música. Neste caso, o leitor volta a pressentir uma perda da melodia original da fala, só que desta vez pela interferência de uma melodia externa, invasiva. Por mais que a melodia de uma canção se aproxime das melodias espontâneas de nossa fala, ela será sempre uma melodia formalizada e especificamente musical, e dessa forma é como se obrigasse a fala a uma sujeição pouco confortável. Como se a melodia da fala, tão livre e não planejada, tivesse de ceder lugar a uma melodia mais deliberada, mais poderosa, uma melodia de natureza estrangeira à fala.

Braulio Tavares é compositor, autor de Contando Histórias em Versos (Editora 34, 2005)
btavares13@terra.com.br

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